quarta-feira, 24 de abril de 2024

Sobre "Os enredos forçados da vida..."

Assisti, por indicação de uma ex-aluna, agora professora e "dorameira", a série coreana Hae Ryung - a historiadora, do gênero histórico/Drama/Comédia/Política... Como praticamente toda produção asiática, tem romance (e eu gosto!). Mas, o importante nessa série, em especial, é a quebra de paradigmas em relação ao papel da mulher na sociedade.



A protagonista, Goo Hae Ryung (Shin Se Kyung), não quer casar, quer ter um emprego, ser independente... Isso, no começo do século XIX, que é quando se passa a história, o que vai “contra” as regras da sociedade patriarcal e machista daquele momento e daquele país, Coreia do Sul, e - infelizmente - de todos os outros momentos e de todos os outros países, inclusive o nosso.

Além disso, muito interessante é que o “mocinho”, Yi Rim (Cha Eun Woo), é sensível, se emociona, quer ser escritor de romances (e escreve!) e não príncipe... Nada do estereótipo de cavalheiro com espada na mão, tão comum para as histórias de época!

Várias questões me chamaram a atenção no decorrer da trama, dentre elas a influência do mundo ocidental que começa a entrar no mundo oriental e a resistência do tradicionalismo, e percebam que não estou falando de aculturamento e tampouco do lado "bom" em se manter a tradição, mas sim dos que - em virtude de falsos ou moralistas discursos - tudo fazem para evitar a entrada do novo, do diferente... Isso aparece fortemente na série quando há um surto de varíola e um grupo começa a “vacinar” as pessoas inoculando nelas pus de lesões de pessoas contaminadas, a partir de orientações que alguns haviam adquirido de um médico ocidental que por lá esteve. Mesmo tendo provas de que funcionava, o “tradicionalismo” arraigado não quer permitir a cura... 

(Um breve aparte para a história da vacina: o médico inglês Edward Jenner, em 1796, "inventou" a vacina, após inocular em um menino saudável pus da mão de uma mulher que havia contraído a varíola bovina. Essa mulher era ordenhadeira e Jenner havia percebido que essas mulheres eram imunes à varíola humana. O menino acabou contraindo varíola, de uma forma bem amena. Alguns meses depois, ele inoculou nesse mesmo menino o vírus da varíola humana e ele não contraiu a doença, provando que havia se tornado imune. Estava criada a vacina - do latim vaccinae, vacca, que significa "da vaca" ou "relativo à vaca". Na época, Jenner enfrentou o famoso "negacionismo" em seu país... Foi preciso que médicos de outros países fizessem uso desse método e curassem as pessoas para que ele fosse reconhecido!)


(Mais um breve aparte: Isso me fez lembrar dos atuais tempos, em que há uma forte resistência do povo contra as vacinas que estão sendo criadas para nos imunizar contra a COVID-19... Principalmente, se a vacina for a da China - olha o tradicionalismo de novo aí!). Enfim...como afirma um grande sábio, o Sr. Ditado Popular, “Jacu escassa, mas não acaba”!)

Contudo, essas são outras, mas não menos importantes, searas (do céltico "senăra" 'campo que se lavra à parte', de acordo com o Dicionário Houaiss)... 

E, então, volto ao que apenas eu queria refletir neste texto: uma fala da protagonista, dita após ela ouvir uma história do mundo ocidental, a história da Rapunzel, popularizada na versão dos Irmãos Grimm. Eis a fala (grifo meu):

"Na verdade, não me identifiquei muito. Eu sei que é ficção, mas não acha o enredo muito forçado? É improvável ter o cabelo maior que você, mesmo deixando crescer a vida toda. Como o cabelo dela pode ir da torre até o chão? Ela é uma deusa de 500 anos por acaso? Bela coisa nenhuma. É uma história bem cruel. Quando você se penteia e puxa uma mecha de cabelo, o couro cabeludo já dói tanto. E um homem sobe pelo cabelo dela? Quando o príncipe chegar lá em cima, ou vai encontrá-la desmaiada por causa da dor, ou com o pescoço quebrado devido ao peso."

E, ao trazer essa fala, espero que possamos refletir que está mais do que na hora de a gente reler/rever/reescrever essas histórias de submissão das mulheres, para que isso não se perpetue na mente de tantas crianças, principalmente as meninas, que acabam sendo criadas “vestidas de rosa” e à espera de que alguém venha salvá-las! Quando falo "vestidas de rosa" não estou falando necessariamente da cor, até porque eu amo rosa, mas em todas as ideologias que acompanham essa ideia!

Quiçá, um dia, possamos “ler” muitas dessas histórias que tentam "moldar" as mulheres apenas como ficção mesmo, e não como retratos de uma época! 

Façamos nosso próprio salvamento!

Abraço. Seja feliz.

Rosangela Marquezi
Professora por formação e atuação, mas espectadora de boas séries por opção


Pato Branco, 04 de novembro de 2020.


Dicas da Sustância


1. Assista Hae Ryung - A Historiadora (2019), série sul-coreana que se passa no período histórico da Dinastia Joseon, no período de 1800 (Século XIX). É uma história que tem romance, drama, comédia, política, mas, sobretudo, a firme e importante presença da mulher que não se submete a seguir padrões pré-estabelecidos. A história gira em torno de jogos de poder que envolvem a família real e a luta de Hae Ryung, a protagonista, em ser uma historiadora, cargo que era do domínio masculino. São 16 episódios dirigidos por Kang Il Soo e Han Hyun Hee, com roteiro de Kim Ho Soo. Nos papeis principais, a atriz Shin Se Kyung e o ator e cantor (Astro) Cha Eun Woo.

2. Assista ao filme da Disney Enrolados (2010), uma versão que subverte os clichês da famosa história de Rapunzel. Em roteiro assinado por Dan Fogelman, nessa versão o conservadorismo fica de fora, mostrando uma garota adolescente – e como tal com alterações frequentes de humor – que é hiperativa mesmo estando confinada na torre. Ah, e ela não é uma protagonista que fica apenas esperando o seu príncipe encantado para então “jogar as tranças”. Não há, contudo, no filme, um desprendimento total dos “valores e ações” atribuídos às mulheres, mas já é um bom começo, pois dá uma certa atemporalidade à história, mostrando que mulheres podem e devem construir seu próprio caminho, mesmo vivendo um grande amor.

* Sobre Rapunzel: a versão mais conhecida é dos Irmãos Grimm (1812), mas os contos que eles escreveram foram baseados em outros tantos já existentes na tradição oral. Alguns até já haviam sido escritos, mas com diferenças significativas. Em 1634, o italiano Giambattista Basile havia escrito Petrosinella e, em 1698, a francesa Charlotte-Rose de Caumont de La Force, escreveu Persinette (1698). Ambas as histórias têm o mesmo mote de Rapunzel.

3. Veja a pintura maravilhosa de Vincent van Gogh, A noite estrelada (1889). No filme que indiquei acima, Enrolados, logo no início, vemos a protagonista, Rapunzel, pintando. Uma de suas pinturas lembra muito essa obra de van Gogh, que retrata a vista de uma janela de um quarto de sanatório, onde ele estava internado (voluntariamente), pouco antes do nascer do sol... Quem já leu sobre a vida de van Gogh, consegue compreender a visão do artista exposta neste quadro (mesmo não estando à venda, pois está no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, desde 1941, estima-se que o valor deste quadro seja “algo” em torno de 100 milhões de dólares...).


Fonte: MoMa (no site, você pode visualizar em 3D a obra!)



4. Leia Os sofrimentos do jovem Werther, do famoso escritor alemão Goethe, e que é lido, de forma até irônica, pela protagonista no início de Hae Ryung - A Historiadora, a algumas mulheres. A ideia, penso eu, é justamente mostrar que ela, a protagonista, não se renderia a um tipo de amor insano como esse. Ao término da leitura, uma das mulheres que a ouviam pergunta, indignada: “Você leu uma história em que o casal nem termina junto?”, ao que Hae Ryun responde: “Ver um jovem e tolo Werther acabar com a própria vida por causa de sentimentos fugazes nos ensina que não devemos viver assim. Onde mais aprender uma lição tão valiosa?”

Mas por que, então, indico a leitura desse livro? É que Os sofrimentos do jovem Werther é a obra que dá início ao movimento do Romantismo na Europa. A história, apesar de o autor ter tido o cuidado de não colocar nomes e lugares conhecidos, possui, segundo pesquisadores, tons autobiográficos. Nela, Werther, um jovem soldado, apaixona-se por uma mulher que já está prometida a outro homem. Mesmo depois de casada, ele continua apaixonado. Para ele, a vida só tem sentido se for para viver com sua amada. Não podendo consumar este amor, ele opta por tirar a própria vida (É esta parte do livro que Hae Ryung está lendo, no início do primeiro episódio). O livro é considerado o primeiro best-seller da literatura europeia. Uma curiosidade: Napoleão Bonaparte, em depoimento ao próprio Goethe, em 1808, disse que o leu 7 vezes!



Sobre "Os enredos forçados da vida..."

Assisti, por indicação de uma ex-aluna, agora professora e "dorameira", a série coreana Hae Ryung - a historiadora , do gênero his...